Membro do alto escalão da Educação controlava empresa ‘campeã’ das APMs
Chefe da Divisão de Atribuição de Aulas tinha procuração para gerenciar a empresa que recebeu R$ 836 mil sem licitação em 2021
Uma professora concursada, que exerce a função comissionada de chefe da Divisão de Atribuição de Aulas da rede municipal de ensino, tinha procuração para gerenciar a empresa que recebeu, em 2021, R$ 836 mil das APMs (Associação de Pais e Mestres). Os pagamentos foram feitos com recursos públicos, sem licitação.
Farolete localizou, na Junta Comercial, que Izaura Tereza Guidugli Lovato, proprietária da microempresa que leva seu nome, assinou uma procuração dando à servidora Roberta Leonardo “poderes para tratar de assuntos, negócios e interesses” da empresa, inclusive realizar movimentações bancárias e assinar contratos.
Conforme Farolete revelou em série de reportagens, a Secretaria de Educação aportou R$ 14,1 milhões nas APMs em 2021, um recorde, maior que a somatória dos quatro anos anteriores.
Essas associações, essenciais para as escolas, fazem compras baseadas apenas em cotações de preços, e têm menos transparência e fiscalização do que a prefeitura.
A empresa Izaura Tereza Guidugli Lovato foi a preferida das APMs em 2021, sendo contratada por 50 das 108 associações. Juntas, elas gastaram R$ 7,2 milhões no ano passado. Um a cada oito reais foi parar na microempresa ligada a Roberta. Os gastos de 2022 ainda não estão disponíveis no Portal de Transparência.
O endereço comercial da microempresa remete a um condomínio residencial no Jardim Zara. Na procuração consta que Roberta Leonardo reside no mesmo local.
Além de Roberta, a empresa deu procuração para Nilton Carlos Lovato, que também mora no mesmo endereço.
Trecho da procuração obtida pelo Farolete (dados pessoais ocultados).
Farolete apurou que Nilton e Roberta são companheiros. É ele quem responde, na prática, pela empresa. Três integrantes de comunidades escolares distintas relataram, à reportagem, que a relação deles é conhecida nas escolas.
“Mesmo que indiretamente, há uma ingerência da Roberta com as diretoras que controlam as APMs, em razão de seu cargo e também porque ela já foi diretora de uma EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil)”, relatou um profissional, sob anonimato, ao Farolete.
Roberta coordena a atribuição de aulas dos professores, sem estar relacionada com recursos financeiros para as APMs, que são gerenciados por outro setor na Secretaria.
Nenhuma fonte apontou ao Farolete interferência explícita da servidora na contratação da empresa pelas APMs.
Entretanto, sua situação pode afrontar a Lei Municipal 3181/76, que disciplina a atuação dos servidores municipais.
O Art. 237 diz ser “incompatível o exercício de cargo ou função pública municipal” por servidor que tem “participação de gerencia ou administração de empresas (…) de prestação de serviços que mantenham relações negociais com o Município, sejam por este subvencionadas ou diretamente relacionadas com a finalidade da repartição ou serviço em que o funcionário estiver lotado”.
Em nota, a prefeitura afirmou que a Corregedoria irá investigar o caso. Internamente, integrantes do Executivo avaliam que mesmo não havendo ilegalidade, o caso revelado pelo Farolete escancara a necessidade de atualizar e aprimorar os mecanismos internos de controle envolvendo as APMs.
Histórico
A procuração dando poderes à servidora Roberta foi feita em 2014 e anexada na Junta Comercial em 2017. Não há, na consulta de documentos disponibilizada pelo órgão, modificação dessa cessão de direitos.
Tanto a Secretaria de Educação quanto a empresa afirmaram, ao Farolete, que a procuração foi revogada, mas sem mencionar a data, tampouco se a revogação ocorreu após os questionamentos da reportagem (leia mais abaixo).
Entre 2017 e 2018, a empresa Izaura recebeu R$ 48 mil da prefeitura de Ribeirão Preto e Guarda Municipal, por meio da modalidade dispensa de licitação, para pequenos reparos em prédios públicos.
Servidora
Roberta é professora concursada da Rede Municipal desde 1999. Ela atuou por quase uma década como diretora de uma Escola de Ensino Infantil e, no segundo semestre de 2016, foi nomeada como assessora do Secretário de Educação, mantendo-se no posto no governo Duarte Nogueira.
Em 2020, segundo o Portal de Transparência, ela não exerceu mais funções em comissão. Em maio do ano passado voltou ao primeiro escalão, nomeada como Chefe da Divisão de Atribuição de Aulas.
Outro lado
A empresa Izaura ME afirmou que Roberta “não tem interferência nenhuma na prestação de serviços e é alheia a qualquer situação que envolva a empresa”. Afirmou, ainda, que dentro da prefeitura sua atuação é “estritamente ligada a professores”.
“Com relação à procuração, ela já se encontra revogada”, informou a empresa, sem citar a data de revogação, mesmo quando questionada especificamente sobre isso pelo Farolete.
Na reportagem anterior, a microempresa já havia manifestado que atua há mais de uma década no mercado de obras e reformas, prestando serviços para a iniciativa privada, particulares e poder público.
Já a Secretaria de Educação reforçou os posicionamentos anteriores, explicando que “as APMs possuem autonomia” e a pasta “não interfere nas decisões no que se refere à aplicação de recursos e escolha de fornecedores para execução de melhorias nas escolas municipais”.
“É importante informar ainda que as prestações de contas dos repasses foram encaminhados ao Tribunal de Contas do Estado”, que segundo a pasta estão sendo analisados e “sem apontamentos até o momento”.
A pasta também afirmou “trabalhar para o aperfeiçoamento das prestações de contas no Portal da Transparência” e que “encaminhará todas as informações levantadas para a Corregedoria Geral do Município”.
Farolete apurou que ontem, motivada pela reportagem, a Secretaria de Educação fez um levantamento junto a diversas diretoras para entender por que a empresa Izaura Tereza Guidugli Lovato era a campeã de contratos com as APMs. Elas alegaram que os serviços eram baratos e bem executados, sem favorecimento.
Das 5.570 cidades brasileiras, apenas três não possuem um Plano Municipal de Educação (PME): Ribeirão Preto, Iaras e Vargem, todas paulistas. Sem o documento aprovado na forma de lei, algo obrigatório desde 2016, esses municípios são barrados para recursos milionários do Ministério da Educação (MEC).
O PME planeja as políticas públicas municipais para o ensino pelos próximos dez anos, estipulando gastos, indicadores, metas e ações. Ele é uma exigência do Plano Nacional de Educação, que vigora no país desde 2014.
Ribeirão Preto foi vanguarda ao iniciar suas discussões em 2007, mas as gestões Dárcy Vera (2009-2016) e Duarte Nogueira (2017-atual) foram incapazes de chegar a um consenso entre Executivo, Legislativo e sociedade. Assim, um PNE nunca chegou a ser transformado em lei, algo que outras 5.567 prefeituras tiveram êxito.
“Além de ser dever legal desde 2016, o PME é fundamental para dar um norte que vá além da visão imediatista do secretário ou prefeito de plantão. Sem planejamento de longo prazo, não há qualidade de gestão”, resume José Marcelino de Rezende Pinto, professor da USP-RP e ex-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (leia entrevista no final da reportagem).
Barrado
Por não ter PME, Ribeirão Preto está proibido de pleitear recursos do PAR (Plano de Ações Articuladas), um programa do MEC para financiar, com verbas suplementares, ações de melhoria na educação. A informação foi confirmada ao Farolete pelo Governo Federal, por meio da Lei de Acesso à Informação.
No ano passado, o MEC repassou R$ 760 milhões para municípios brasileiros que cadastraram projetos no âmbito do PAR, sendo 60 do estado de São Paulo. A capital paulista recebeu R$ 3,5 milhões.
A minúscula Ubirajara, com menos de 5 mil habitantes, ficou com R$ 642 mil.
Os dados foram analisados pelo Farolete na plataforma de execução orçamentária do MEC. O Governo Federal informou, em resposta à Lei de Acesso, não ser possível estipular quanto Ribeirão Preto já deixou de receber, pois as verbas são definidas de acordo com os projetos cadastrados.
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